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Entre a ausência e a esperança: um olhar sobre o luto a partir de Mary-Frances O’Connor

Introdução


Perder alguém que amamos é uma das experiências mais avassaladoras da existência humana. Embora o luto seja universal, ele se manifesta de formas muito singulares, e ainda hoje é cercado por silêncio, pressa e incompreensão. Em O Cérebro de Luto, a neurocientista Mary-Frances O’Connor nos convida a olhar para a dor da perda por outra perspectiva: a do cérebro. Ao longo da obra, ela mostra como a neurociência pode ajudar a compreender por que sofremos tanto, por que é tão difícil “seguir em frente” e por que a ausência de quem amamos continua viva dentro de nós.

Neste artigo, proponho um olhar sensível e científico sobre o luto, inspirado na leitura da obra de O’Connor. Meu objetivo é explorar como o cérebro responde à perda, por que o luto é uma forma de adaptação e como esse entendimento pode me ajudar e talvez ajudar outros a acolher melhor essa dor que transforma tudo o que conhecíamos sobre presença, tempo e amor.


O que acontece no cérebro durante o luto?


O luto não é apenas uma experiência emocional ele é também um processo profundamente cerebral. Quando perdemos alguém com quem temos um vínculo afetivo, o cérebro entra em uma espécie de colapso funcional. A neurocientista Mary-Frances O’Connor explica que os circuitos neurais responsáveis pelos laços sociais continuam ativos mesmo após a morte da pessoa amada. Isso significa que, neurologicamente, o cérebro ainda espera o retorno da presença que se foi. Essa expectativa por mais irracional que pareça é uma reação biológica natural.


Um dos sistemas mais afetados é o de recompensa. O mesmo circuito que nos dá prazer ao estarmos com quem amamos também sofre intensamente com a ausência. As áreas relacionadas ao apego, como o córtex pré-frontal ventromedial e o núcleo accumbens, entram em atividade mesmo diante da impossibilidade da presença real. O resultado disso é um conflito interno entre o saber racional de que a pessoa morreu e o impulso inconsciente de esperá-la novamente.


Posso dizer isso não apenas como alguém que leu e estudou o tema, mas como quem viveu essa dor. Quando minha filha morreu, a ausência dela não durou semanas nem meses foi uma ausência viva por mais de 25 anos. Muitas vezes, eu a via sentada dentro do berço, sentia seu cheiro, chamava por ela, como se em algum momento ela fosse responder. Eu sabia que ela havia partido, mas meu corpo, meu afeto e meu cérebro ainda não haviam compreendido. Isso que a ciência descreve como um "descompasso entre a realidade externa e a interna" foi exatamente o que vivi, mesmo sem nomeá-lo assim na época.


O’Connor ainda destaca o papel da rede de modo padrão uma rede cerebral envolvida em pensamentos espontâneos, memórias e projeções. Essa rede se torna especialmente ativa no luto, contribuindo para as lembranças constantes, os devaneios e até a sensação de que a pessoa falecida ainda está por perto.

Compreender que o cérebro está tentando se reorganizar diante de uma ausência tão radical é um passo importante para acolher a dor sem julgamento. O sofrimento, nesse contexto, não é sinal de fraqueza é sinal de vínculo, e o cérebro precisa de tempo para atualizar a realidade interna com a realidade externa.


O luto como adaptação, não como doença


Durante muito tempo, o luto foi visto como um estado a ser superado, quase como uma fase doente da vida emocional. Mas Mary-Frances O’Connor, com sua abordagem baseada em evidências, propõe um olhar totalmente diferente: o luto não é uma patologia é um processo de adaptação do cérebro a uma nova realidade. Perder alguém profundamente significativo é como ter o chão removido sob os pés. O luto, nesse contexto, é a tentativa do organismo de reaprender a viver em um mundo onde aquela pessoa não existe mais fisicamente.


Há uma diferença importante entre luto normal e o que a autora chama de luto prolongado ou complicado. O luto normal envolve ondas de tristeza, saudade, confusão, mas aos poucos a pessoa vai conseguindo reorganizar sua vida. Já no luto complicado, esse processo de adaptação é interrompido ou bloqueado, muitas vezes exigindo ajuda profissional. Mas mesmo nesses casos, O’Connor insiste: não se trata de uma “doença da alma”, e sim de um caminho que ficou preso em um ponto de dor.


Eu demorei muitos anos para compreender isso. Durante muito tempo, me perguntava se havia algo errado comigo por continuar sentindo a falta da minha filha de forma tão intensa, mesmo depois de décadas. Mas hoje entendo que meu cérebro precisou de um tempo diferente para se adaptar. Não porque eu era fraca, mas porque o vínculo que construí com ela era forte demais para caber em um tempo cronológico qualquer. O amor não se dissolve com o tempo. E o luto, por mais que mude de forma, continua sendo uma presença silenciosa que pede aceitação, não pressa.

Quando olhamos para o luto como uma resposta saudável do cérebro a uma perda inaceitável, podemos parar de cobrar que ele tenha um fim. Podemos aprender a conviver com a dor sem patologizá-la, e a respeitar o tempo de cada um que nem sempre coincide com o tempo do mundo.


O papel da empatia, da escuta e da psicanálise no processo de luto


Se o luto é uma reorganização psíquica e cerebral, como mostra Mary-Frances O’Connor, então ele não pode ser tratado com frases prontas, conselhos vazios ou com a pressa de quem quer que o outro “supere logo”. Atravessar o luto exige espaço para o sentir e isso só é possível quando há escuta empática, validação da dor e silêncio acolhedor.

A psicanálise, desde Freud, já reconhecia o luto como um processo profundo de elaboração interna. Em seu texto Luto e Melancolia, Freud afirmava que o luto é o tempo necessário para o ego desinvestir a energia psíquica colocada no objeto amado perdido. Mas diferentemente da melancolia, o luto não adoece a estrutura psíquica ele a transforma.


Como psicanalista, compreendo hoje que oferecer escuta a quem está em luto é mais do que ouvir palavras: é sustentar a dor que não tem nome, o grito que não foi dado, o vínculo que não quer morrer. É não se apressar para “curar” o outro, mas permitir que ele descubra, no seu tempo, uma nova forma de habitar o mundo sem aquela pessoa.

Na minha própria trajetória, precisei aprender a escutar a mim mesma. Houve momentos em que me silenciei porque achava que ninguém compreenderia minha dor. Só mais tarde percebi que a escuta mais curativa começa quando alguém, mesmo sem saber o que dizer, não foge da dor do outro. Porque o luto precisa de companhia, não de soluções.

A ciência nos mostra o que acontece com o cérebro. A psicanálise nos ajuda a elaborar isso simbolicamente. Mas é a empatia entre o saber e o sentir que faz com que o luto se torne menos solitário.


Conclusão:


Concluir um artigo sobre o luto é quase tão difícil quanto concluir o próprio processo de luto se é que ele realmente se conclui. Após mais de 25 anos convivendo com a ausência da minha filha, aprendi que o luto não é algo que se resolve com o tempo, mas algo que se carrega, que se reinventa, que se acomoda em silêncios onde antes havia risos e cheiros. A saudade, que no início fere como faca, vai mudando de forma, mas nunca desaparece por completo.


A obra de Mary-Frances O’Connor me deu linguagem para aquilo que por tanto tempo foi apenas sensação. Ao ler que “o luto é o preço que pagamos por termos amado alguém” (O’Connor, 2022), senti que, enfim, alguém dizia o que eu carregava no corpo e na alma. Entendi que meu cérebro não era disfuncional por ainda sentir sua presença ele apenas estava tentando, incansavelmente, atualizar uma realidade insuportável: a de que alguém que amo profundamente não está mais aqui.

A neurociência, com sua precisão técnica, e a psicanálise, com sua escuta simbólica, me ensinaram que o luto não é uma doença a ser curada, mas uma experiência de amor em estado bruto. O sofrimento, nesse contexto, deixa de ser algo que envergonha para se tornar uma espécie de altar íntimo um espaço sagrado onde o vínculo continua existindo, mesmo sem matéria.


Mas não foram apenas os estudos que me ensinaram isso. Foi a experiência viva de ver minha filha sentada dentro do berço mesmo depois da sua partida, de sentir seu cheiro onde só havia ausência, de chamá-la por nome esperando uma resposta impossível. Foram esses momentos que a razão não explica, mas que o afeto sustenta que me mostraram que o luto é a forma que o amor encontra para continuar existindo quando não há mais abraço.

Hoje, ao escrever este artigo, sinto que dei um passo a mais na travessia. Transformar a dor em palavra, a memória em reflexão e a ausência em sentido foi minha maneira de honrar esse vínculo que o tempo não apaga. E se estas linhas chegarem até alguém que, assim como eu, sente que o mundo seguiu mas seu coração parou em algum ponto da história, desejo apenas que saiba: você não está só. Seu cérebro está tentando proteger o que o amor construiu. Seu luto não é um erro é um testemunho da profundidade com que você soube amar.

Agradeço a minha filha Amanda por ter me presenteado com esse livro tão esclarecedor e profundo.


Artigo escrito pela psicanalista clinica Flora Dominguez


Referências:

O’CONNOR, Mary-Frances. O cérebro de luto: A surpreendente ciência por trás da dor da perda e o caminho da cura. Tradução de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2022.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: FREUD, S. Obras completas. Volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


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©2022 por Flora Dominguez

e Celso Araújo

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