Renascimento
- Flora Dominguez
- 6 de fev.
- 4 min de leitura
morri tantas vezes
dentro de mim mesma
que aprendi
a renascer sozinha
troquei de pele
como a lua troca de fase
aceitei que a escuridão
também faz parte do ciclo
hoje me abraço
com as mãos que um dia
me feriram
sussurro para minhas cicatrizes
vocês não me definem
sou feita de quedas
mas também de voo
e a cada renascimento
me torno mais minha.
Análise Psicanalítica do Poema "Renascimento"
O poema "Renascimento" reflete uma jornada psíquica de transformação e ressignificação do sofrimento, alinhada a conceitos fundamentais da psicanálise, como o trauma, a resiliência psíquica, o trabalho de luto e a reintegração do Eu. O texto exprime um movimento cíclico de morte e renascimento interno, destacando a capacidade da subjetividade humana de se reconstruir após vivências de dor e autodestruição.
1. A Morte e o Renascimento do Eu
A primeira estrofe introduz a ideia de mortes internas e de um Eu fragmentado que aprende a renascer sozinho. A repetição dessas mortes psíquicas pode ser lida como uma referência à teoria do luto freudiano (Luto e Melancolia, 1917), onde cada perda emocional significativa exige um trabalho psíquico de reintegração. Nesse sentido, o renascimento não se dá como um evento isolado, mas como um processo contínuo de reconstrução identitária.
Essa constante transformação evoca também o conceito de compulsão à repetição (Freud, 1920), pois o sujeito parece revisitar suas próprias dores para aprender a emergir delas. A resiliência psíquica aqui se apresenta como um ato solitário, sugerindo uma defesa narcísica que não depende do outro para a reconstrução do Eu.
2. A Pele e as Fases da Lua: Transformação e Aceitação da Escuridão
Na segunda estrofe, a metáfora da troca de pele remete ao conceito de mudança de identidade e renovação psíquica, semelhante ao arquétipo junguiano da serpente, símbolo da transformação. A referência às fases da lua reforça a noção de ciclicidade da psique, onde o sujeito aceita que a escuridão também faz parte da sua natureza.
Essa aceitação do lado sombrio pode ser interpretada à luz do conceito de sombra, descrito por Carl Jung. A sombra é composta por todos os aspectos reprimidos da personalidade, aqueles que são considerados inaceitáveis pelo Eu consciente. Ao afirmar que "aceitei que a escuridão também faz parte do ciclo", o poema sugere um processo de integração da sombra, essencial para a individuação e o crescimento psíquico.
Além disso, há um afastamento da idealização da luz como único caminho. O sujeito poético reconhece que, assim como a lua, sua subjetividade passa por fases, e que a escuridão não deve ser negada, mas compreendida.
3. O Perdão e a Ressignificação das Cicatrizes
A terceira estrofe apresenta um dos versos mais profundos do poema: "hoje me abraço com as mãos que um dia me feriram".
Aqui, há um claro movimento de ressignificação do trauma. Segundo Ferenczi, no estudo do trauma psíquico, há uma tendência inicial de dissociação e negação da dor. No entanto, para que a cura ocorra, é necessário reintegrar o sofrimento na narrativa da identidade. O sujeito poético, ao se abraçar com as mãos que um dia o feriram, demonstra uma superação da cisão interna, transformando a dor em um aprendizado.
Esse processo pode ser entendido também como uma reconciliação com o próprio passado, algo essencial na psicanálise. Muitas vezes, a dor não vem apenas do evento traumático em si, mas da forma como ele se cristaliza no psiquismo. Quando a cicatriz é ressignificada, ela deixa de definir o sujeito, tornando-se apenas uma marca de sua trajetória.
4. As Quedas e o Voo: A Dialética da Superação
Na última estrofe, o verso "sou feita de quedas, mas também de voo" resume a essência do processo psíquico de resiliência. O reconhecimento de que a identidade se constrói tanto a partir das quedas quanto dos momentos de ascensão alude ao conceito winnicottiano de amadurecimento emocional.
Winnicott (1971) afirma que o verdadeiro desenvolvimento psíquico não ocorre sem rupturas, frustrações e crises. O sujeito que amadurece aprende a suportar a dor sem se fragmentar, usando-a como parte da construção de um Eu mais integrado.
O poema culmina com a afirmação "e a cada renascimento me torno mais minha", destacando um fortalecimento do sentimento de si. O sujeito não apenas renasce, mas se apropria de sua identidade de forma cada vez mais autêntica. Isso sugere uma transição da dependência para a autonomia emocional, um caminho essencial para a individuação.
Conclusão:
A psicanálise vê o renascimento subjetivo como um processo árduo de trabalho psíquico, onde a dor não desaparece, mas é reintegrada de forma simbólica. O poema "Renascimento" ilustra essa jornada de maneira poética e profunda, abordando temas como a ressignificação do trauma, a aceitação da sombra e a reconciliação com o passado.
Ele nos lembra que não somos apenas nossas feridas, mas também a força que nos permite superá-las. E, acima de tudo, nos ensina que a verdadeira transformação acontece quando nos tornamos mais nossos, apropriando-nos da nossa história e das nossas próprias renascenças.
Poema e análise feita pela Psicanalista Clinica Flora Dominguez

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